
Quando Orwell, Voltaire e Stevenson explicam a COP30
O ano letivo se arrasta para o fim, mas meu hiperfoco insiste em me negar descanso. Estou na sala dos professores, esse espaço onde o silêncio é tão raro quanto uma tarde sem burocracia. Sobre a mesa, espalho alguns livros que pretendo usar no próximo ano: Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire; O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson; e A Revolução dos Bichos, de George Orwell. O cheiro de papel envelhecido mistura-se ao aroma do café requentado, criando uma atmosfera que oscila entre o estudo e a sobrevivência.
Por alguns minutos, desfruto da felicidade do silêncio. Mas logo a porta se abre e um grupo animado de professores invade o ambiente. Risadas, vozes altas, passos apressados — a sala se transforma em um palco improvisado. “Ligando” meu superpoder de TDAH, consigo captar fragmentos da conversa enquanto resumo trechos dos livros. Não sei bem como funciona essa habilidade: leio e escuto ao mesmo tempo, como se minha mente fosse uma antena caótica.
Estão eufóricos. Comemoram os discursos das autoridades no grande espetáculo ambientalista chamado COP30.
— Foi um sucesso — exclama um deles, com brilho nos olhos.
— Viram só? Agora os fascistas que ganham dinheiro explorando a tilápia terão de pagar mais impostos! — acrescenta outro, gesticulando como se estivesse num palanque. — Vamos destruir esses monstros do agronegócio que destroem nosso bioma e abusam das populações ribeirinhas e indígenas!
Observo em silêncio, fingindo uma pequena demência intelectual, enquanto sorvo meu café amargo e mordisco o chocolatinho vespertino que me mantém desperto até as seis da tarde. Por dentro, meu hiperfoco já se acendeu: preciso pesquisar.
Abro uma nova aba no computador. Descubro que, no início, as COPs eram encontros modestos entre diplomatas e ativistas. Com o tempo, viraram megaeventos midiáticos, mais voltados para boas imagens do que para soluções. A COP 27, no Egito, reuniu 33 mil participantes — muitos vindos de países pobres, às custas de dinheiro público. A COP 28, em Dubai, superou tudo: 90 mil pessoas, o maior evento climático da história, mas também o mais contraditório.
Leio que os participantes alternam entre cargos em governos, ONGs e organismos internacionais, garantindo acesso a bilhões de dólares em fundos. A COP funciona como uma feira de negócios, palco para acordos e disputas de influência. Mais de 2400 representantes da indústria de óleo e gás circularam livremente na COP 28. E até organizadores foram flagrados atuando como lobistas, negociando contratos de exploração de petróleo.
Pergunto a mim mesmo: por que essas denúncias não ganham manchetes? A frase de Orwell ecoa como resposta: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.”
Continuo minha pesquisa e encontro dados sobre a COP 30, realizada em Belém. O governo reservou R$1 bilhão para o evento, além de gastos extras com navios de luxo e acordos internacionais. Contradições saltam aos olhos: mais de 100 hectares de mata nativa derrubados para abrir a Avenida Liberdade; retrocessos no marco do saneamento básico, mantendo rios urbanos cheios de esgoto; aumento de impostos sobre carros elétricos e híbridos, dificultando a transição energética. O discurso ambientalista, tão bem ensaiado, colide com a prática.
Às vezes me impressiona como a literatura poderia ajudar qualquer indivíduo a perceber a hipocrisia desses discursos. Voltaire, em Cândido, ironiza o contraste entre idealismo e desastre. Stevenson, em O Médico e o Monstro, oferece a metáfora perfeita para a duplicidade: o discurso verde como Dr. Jekyll, os contratos de exploração fóssil como Mr. Hyde.
Mas de que adianta discutir ou apontar equívocos se a maioria prefere viver dentro de uma bolha idealista, protegida por slogans e imagens de impacto? Fecho as abas de pesquisa, volto aos meus resumos e encontro paz na simultaneidade de ler e escrever.
Afinal, nesse pequeno refúgio de papel e tinta, sou mais feliz.
Publicado em 20/11/2025 - por Daniel Camargo Thomaz