
O dia em que a biblioteca virou pauta
Segunda-feira. Normalmente, um dia animado, no qual minhas energias vibram como se, durante o fim de semana, meu corpo tivesse permanecido conectado a uma tomada mágica, capaz de me recarregar completamente. Porém, desta vez, a animação divide espaço com um nervosismo crescente: estamos na semana que antecede a 1ª Feira Literária que organizo. Sinto-me como o Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas — atrasado, angustiado e ansioso. Não necessariamente nesta ordem. Dentro da minha cabeça, um relógio invisível faz “tic tac” sem cessar, amplificando cada batida do meu coração.
Respiro fundo, ajeito os óculos, e adentro uma das salas do Ensino Médio com entusiasmo — afinal, aqueles estudantes terão suas crônicas publicadas em uma antologia, que será lançada durante o evento. O ar da sala, no entanto, está denso de preguiça adolescente. Mochilas largadas no chão, celulares escondidos entre cadernos e olhares semicerrados me aguardam como quem encara a última aula de uma sexta-feira chuvosa, mas hoje é só segunda
— Bom dia, turma! — anuncio, com meu melhor sorriso de “professor entusiasmado”.
A resposta vem em coro murcho, como um balão esvaziando:
— Bom dia...
Quando começo a falar sobre a feira, a reação é imediata:
— Professor, é sério que o senhor fez um evento pra gente vir à escola num sábado? — protesta um estudante, recostando-se na cadeira com a convicção de quem luta por um direito constitucional.
— Tá doido, professor? Deixar de jogar um futi? — completa outro, indignado, como se eu tivesse sugerido a extinção do feriado de Carnaval.
Mas o golpe mais certeiro vem de uma das melhores alunas, que costuma escrever redações dignas de nota máxima:
— Sem noção, professor! Não tinha mais o que inventar?
Por um segundo, sinto minha alma de organizador literário querer sentar e chorar ao lado da lousa. Mas respiro, ajeito novamente os óculos (porque professor nervoso sempre ajeita os óculos) e retruco com teatralidade:
— Meus caros, este é um sábado especial! Teremos a presença de mais de vinte escritores regionais — membros de academias, colunistas, jornalistas, historiadores! Como ousam questionar a validade de um evento tão grandioso? Aliás, sabiam que o município está em festa? A Biblioteca Pública de Palhoça está comemorando cinquenta anos de existência — meio século de cultura à disposição da população! Agora, pergunto: quem aqui sabia desse acontecimento divino?
Silêncio. Um silêncio tão profundo que até o ventilador barulhento pareceu parar para ouvir a resposta que não veio. Mas sempre há um corajoso — ou melhor, um debochado — que resolve intervir:
— Ah, profe… e quem vai numa biblioteca hoje em dia?
A sala explode em risadinhas cúmplices. Alguns olhares dizem “ele tem razão”, outros “estamos salvos, alguém falou por nós”.
Confesso que, naquele instante, um leve saudosismo tomou conta de mim. Lembrei dos meus tempos de escola e faculdade, quando, se queríamos pesquisar algo, havia apenas um destino possível: a Biblioteca. Não existia essa praticidade das livrarias on-line, nem o oráculo chamado “Google” para salvar trabalhos de última hora. Para encontrar bons livros, era preciso caminhar até uma biblioteca, sentir o cheiro do papel envelhecido, ouvir o ranger dos armários e se perder entre prateleiras silenciosas.
Lembrei de A Menina que Roubava Livros, Liesel Meminger, que fazia da leitura um refúgio em tempos sombrios. E me perguntei: onde foi parar o prazer da juventude em mergulhar nas páginas de um livro?
Provavelmente, no mesmo lugar onde repousa o interesse pela boa oratória, pela poesia declamada, pela escuta atenta — ou seja, em algum canto esquecido entre o Wi-Fi e a notificação do Instagram.
— Meus queridos — continuo, teatral —, haverá um tempo em que vocês talvez se lembrarão deste dia com saudade… ou arrependimento. Um tempo em que perceberão que a feira literária não era “castigo”, mas uma oportunidade rara.
Uma aluna cochicha:
— Ou uma tortura rara…
Que “Infelicidade Clandestina”, finjo não ouvir, mas sorrio por dentro. Afinal, ironia também é poesia.
Será que Clarice Lispector, Markus Zusak ou até mesmo o Gato de Cheshire nos classificariam como loucos por ignorar uma feira literária? Imagino o felino sorrindo, balançando o rabo e dizendo: “Somos todos loucos aqui”.
No fundo, sei que eles talvez não compreendam agora. Mas quem sabe, um dia, ao passar por uma biblioteca ou ouvir o nome de um autor, lembrem-se desse professor meio doido que falava de livros como quem fala de amores.
E talvez — só talvez — sorriam.
Publicado em 23/10/2025 - por Daniel Camargo Thomaz