“Sem Anistia... Agora é a Nossa Vez?!”
Por: Daniel Camargo Thomaz*
Hoje é sexta-feira, e os estudantes estão consideravelmente... agitados. Ou, para usar uma palavra mais apropriada: perturbados.
Como a aula era com o “terceirão” — turma mítica, dotada de senso crítico refinado, leitores vorazes de clássicos e contemporâneos, acompanhadores assíduos de política nacional e internacional, verdadeiros pensadores livres — SÓ QUE NÃO — imaginei que seria mais uma manhã de debates profundos. Que ingenuidade.
Eles discutiam, aos gritos, o assunto da semana. Metade da turma bradava com fervor:
— Sem anistia!
Enquanto isso, dois ou três tentavam, com certo esforço (e nenhum embasamento), argumentar sobre os princípios da anistia política e sua importância para a democracia. Confesso: não havia argumento algum, apenas uma colcha de retalhos de frases feitas, memes políticos e manchetes mal digeridas. Mas eis que os deuses pedagógicos, que costumam perambular pelos corredores das escolas carregando apitos, diários e sarcasmos invisíveis, resolveram intervir.
O sinal do intervalo tocou. Fui salvo pela sirene — ou pelo gongo, se preferirem.
Os alunos saíram como se a liberdade tivesse sido recém-decretada. Para mim, foi um alívio.
Mas algo da discussão ficou em mim. Um incômodo... um resíduo de pensamento. Caminhei em direção à sala dos professores como quem flutua, absorto. Eu precisava da minha poltrona do canto, do livro salvador e do ritual sagrado: café com chocolate, bebida que considero mística, quase um sacramento pagão.
Instalei-me como um monge em retiro: o chocolate na mesinha lateral, o café na mão direita e, na esquerda, um exemplar de 1984, de George Orwell. Comecei a leitura. Mas meu paraíso durou pouco.
Adentram a sala alguns colegas, e um deles — não sei se pela ausência de filtro ou excesso de entusiasmo — já entra gritando (por que gritam tanto? Talvez não confiem na força dos próprios argumentos):
— Olha só, uma pessoa que participa de uma tentativa de golpe contra o Estado Democrático de Direito TEM que ser presa, sim!
Tentei ignorar. Voltei os olhos ao livro, como se as letras fossem minha barricada.
Mas outro colega, como num jogo de truco ideológico, dá o troco:
— Peraí! Uma professora aposentada, de 72 anos, é presa por sair de casa pra fazer fisioterapia? Isso porque violou a tornozeleira eletrônica! Tu achas isso justo?
A tensão subiu. Minha paciência desceu.
O terceiro professor, que se veste como um panfleto de militância — camiseta com a bandeira da Palestina, bóton escrito “Lula Livre!” e uma voz de trovão — não se conteve:
— Sem anistia aos golpistas!
A professora, visivelmente transtornada, saiu da sala. O professor-militante sentou-se ao meu lado com um sorriso maquiavélico. Eu fingi que não vi. Na verdade, evitei até respirar com muito entusiasmo, para não ser notado.
A reflexão me atropelou.
Como professor de História e Literatura, lembrei que Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil, foi militante da Vanguarda Popular Revolucionária — um grupo armado que assaltava bancos, sequestrava, trocava tiros, sabotava e explodia instalações. Ainda assim, foi anistiada e, como bônus, recebe R$ 10 mil mensais de indenização vitalícia. Enquanto isso, uma ex-professora, presa por questionar as urnas eletrônicas, é tratada como terrorista.
Voltei ao livro, tentando buscar abrigo nas palavras de Orwell. Na obra, o Grande Irmão está sempre observando. O Partido controla tudo: as ações, os pensamentos, os sentimentos. A história é reescrita sem cessar, moldada ao sabor dos interesses. A verdade é flexível. A memória é seletiva. A justiça, um slogan.
Pensei: “Espero que seja apenas coincidência o que percebo na sociedade atual…”
Porque senão for... então Orwell não era um escritor. Era um profeta.
* Professor e escritor, membro da Academia de Letras de Palhoça, atua nas áreas de Língua Portuguesa, Literatura e História. Autor de livros como "Fábulas para o século XXI", "La Befana – um conto de Natal", "Caco em busca da felicidade", "Não se Iluda" e "Uma escolha, um destino"
Publicado em 07/08/2025 - por Palhocense