Passeio ao parque: uma aula de realidade
Por: Daniel Camargo Thomaz*
A escola organizou uma saída de campo. Um momento de reconexão com a natureza, disseram. As crianças iriam correr livres, respirar o ar puro e brincar entre árvores, flores e brinquedos coloridos. Um cenário quase bucólico — se ignorarmos que estamos no século XXI, onde até o verde parece pedir licença para existir.
Ao chegarem à praça, os professores se depararam com uma placa recém-instalada pela prefeitura. Um aviso, digamos, cordial:
“AVISO! Senhores usuários de drogas, POR FAVOR, respeitem a presença das crianças e dos idosos!”
Sim, você leu certo. Não era uma campanha de prevenção, nem uma ação educativa. Era um pedido gentil, quase um convite à civilidade entre tragadas. A distopia de Huxley, com seu “soma” distribuído pelo Estado, parece brincadeira de criança perto da nossa realidade — onde o uso de drogas é tão normalizado que até ganha etiqueta de boas maneiras.
Enquanto os professores tentavam manter a ordem, um cheiro peculiar invadia o ar.
Um aroma de açúcar queimado e vencido, misturado ao azedo de fruta passada e folhas úmidas esquecidas num canto escuro. As crianças franziram o nariz. Os adultos se entreolharam e perceberam que logo ao lado, nos bancos da praça, um grupo de adolescentes e dois adultos fumavam com a tranquilidade de quem ignora avisos e leis com igual desdém.
— Junta as crianças, rápido! — disse uma professora mais experiente, já prevendo o escândalo que os pais fariam.
— Ah, que vontade que dá! — murmurou uma jovem educadora, talvez infectada pelos personagens de Gibson no livro “O Preço da Vida”, onde drogas moldam comportamento e percepção num futuro hiperconectado — muito parecido com o nosso. Um futuro em que o vício é pano de fundo da rotina — e a alienação, uma escolha estilizada.
Futuro? Talvez já estejamos lá. Afinal, não muito longe dali, em Brasília, um casal foi preso por vender drogas a menores de idade. E como se não bastasse, ofereciam brindes temáticos: Esqueleto de peixe para cocaína, Raios para ecstasy e lindos Flocos de neve para haxixe e lança-perfume. Uma espécie de fidelização do cliente — porque até o tráfico, veja só, aderiu ao marketing afetivo.
O passeio, que deveria ser uma aula de ecologia, virou uma aula de sociologia urbana. As professoras tentavam dispersar as perguntas das crianças:
— Tia, que cheiro é esse?
— Deve ser da grama molhada, meu amor.
— Parece peixe podre...
— É... o parque tem muitos bichinhos.
Foi então que uma menina, de olhos arregalados e voz curiosa, perguntou:
— Tia, se isso faz mal, por que os adultos fazem?
A pergunta pairou no ar como o cheiro — incômoda, persistente, impossível de ignorar. As professoras se entreolharam, mas nenhuma resposta parecia suficiente. Afinal, como explicar que o mundo ensina uma coisa e pratica outra?
Hipocrisia? Talvez. Ou apenas sobrevivência pedagógica. Afinal, como explicar que o Estado pede “por favor” aos usuários, enquanto a escola tenta ensinar respeito, saúde e cidadania?
No caminho de volta, o silêncio era mais pedagógico que qualquer palestra. E a pergunta que ficou no ar — junto com o cheiro — era: até que ponto já não vivemos em uma distopia?
* Professor e escritor, membro da Academia de Letras de Palhoça, atua nas áreas de Língua Portuguesa, Literatura e História. Autor de livros como "Fábulas para o século XXI", "La Befana – um conto de Natal", "Caco em busca da felicidade", "Não se Iluda" e "Uma escolha, um destino"
Publicado em 11/09/2025 - por Palhocense