A revolta da caneca
Por: Daniel Camargo Thomaz*
Lembro-me de cada situação cotidiana vivida na função docente que, de tão absurda, parece mentira. Certa vez, em uma escola do município, meu amor pelo café e meu superpoder de foco foram decisivos para a minha organização. Eu havia me preparado com todo o zelo para jamais ser surpreendido pela falta do sagrado ritual: o da poção escura dos sentidos.
Nos primeiros dias, já havia feito minha parte. A orientação era clara: cada professor deveria trazer um pacote de café, filtros de papel e uma caneca. Afinal, era com esse kit de sobrevivência que poderíamos sorver o incomparável néctar da alvorada, companheiro fiel dos educadores.
Como era uma escola nova e eu ainda não conhecia os colegas, levei uma caneca personalizada, presente de alunos de um oitavo ano que eu regia em outra escola. Tinha escrito nela:
“Professor Daniel, amigo e educador!”
Toda bonitinha — e, como eu era o único Daniel da escola, parecia que tudo estava sob controle. Ledo engano.
Porque, no Brasil, especialmente nas instituições de ensino públicas, nada é simples. Sabe como é: alunos desrespeitosos, pais agressivos sem motivo, coordenação omissa e ideologicamente comprometida… E os colegas, claro, sempre à beira de um colapso nervoso. No fim das contas, o culpado? Sempre o professor. Somos os novos mártires — mas sem direito a milagres.
Às vezes, penso que, assim como a Revolta da Canjica no livro O Alienista, onde o barbeiro Porfírio lidera o povo contra os abusos do cientificismo de Simão Bacamarte, nós deveríamos iniciar a Revolta do Café. Um levante organizado contra os abusos do Estado e da sociedade contra os professores. Já temos até pauta: valorização, saúde mental e, claro, respeito à propriedade privada — inclusive à das canecas!
Mas voltemos ao episódio fatídico. Entro na sala dos professores, num misto de exaustão e esperança. Tudo o que eu queria era uma boa xícara de café. Só isso. Caminhei até o balcão... e nada da minha caneca. Sumida. Evaporada. Fiquei ali, paralisado, como quem perde um amigo de longa data.
Sem opções, peguei um copo plástico, daqueles usados para água — mesmo sabendo que a recomendação era evitar seu uso, para “salvar o planeta”. (No Brasil, a Amazônia pega fogo e o problema é o meu copo plástico!)
Nesse instante, o professor de Geografia, em postura digna de um ecoinquisidor, disparou:
— Poxa, já conversamos sobre a consciência que nós, professores, devemos ter e passar para nossos alunos. Aí chega o profe de Português e, na cara dura, pega um copo plástico pra tomar café! Você não tem a sua xícara?
Envergonhado, respirei fundo, pronto para explicar o sumiço da minha relíquia. Foi então que reparei melhor: ele estava segurando a minha caneca. Sim, a xícara com meu nome em alto-relevo! O homem discursava sobre consciência ambiental enquanto sorvia o café na minha caneca sentimental. Uma cena digna de Kafka.
Mantendo a calma, com um sorriso diplomático e uma pitada de sarcasmo, soltei:
— Bom, só espero que o estimado colega não espalhe os meus segredos para todos...
Referia-me, claro, à velha crença de que, ao beber no copo alheio, a pessoa passa a conhecer os segredos do dono. Era uma ironia leve, uma tentativa de encerrar o episódio com humor.
Mas o professor de Geografia não entendeu o tom. Olhou a caneca, leu a inscrição e, transtornado, devolveu com agressividade:
— Ah, vai tomar no... Como eu ia adivinhar?
Bom, era só ler, pensei, mas não disse. Foi aí que o circo pegou fogo.
Num rompante, ele largou a xícara na mesa como se fosse uma tocha e partiu em minha direção com os punhos cerrados:
— Tá de palhaçada, rapaz? Tu me respeita ou eu quebro a tua cara!
Confesso: foram cinco voltas ao redor da mesa. Corri como um maratonista olímpico, enquanto algumas professoras gritavam e outras choravam, numa mistura de pânico e incredulidade. A sala dos professores se transformou num hospício. Por um instante, temi que Simão Bacamarte surgisse pela porta, pronto para nos internar em massa no manicômio de Itaguaí.
Sim, essa é a Educação brasileira. Um lugar onde lutar por uma caneca é mais perigoso do que enfrentar a direção. Onde os professores, entre cópias mal impressas e reuniões inúteis, ainda precisam desviar de socos — metafóricos e literais.
Mas seguimos. Porque, no fundo, amamos ensinar. E porque, mesmo em meio ao caos, ainda acreditamos que um dia o café será forte, a caneca será nossa, e o respeito — finalmente — será servido junto, bem quentinho.
* Professor e escritor, membro da Academia de Letras de Palhoça, atua nas áreas de Língua Portuguesa, Literatura e História. Autor de livros como "Fábulas para o século XXI", "La Befana – um conto de Natal", "Caco em busca da felicidade", "Não se Iluda" e "Uma escolha, um destino"
Publicado em 25/09/2025 - por Palhocense