Um Professor em Terra de Ninguém, entre Kafka e as ideologias
Por: Daniel Camargo Thomaz*
Estávamos em época eleitoral — e já digo de antemão que, mesmo considerando a política extremamente
importante em nossa existência, não gosto das discussões sem sentido que ocorrem nesse período. Bom, seja isso
uma verdade ou não, continuarei...
O momento era de disputa política, e essa eleição era indubitavelmente importante. Além das discussões
ideológicas e econômicas, as pessoas passaram a acusar os desafetos políticos — ou seja, aqueles que pensam
diferente delas — com adjetivos, perdoem-me, mas vergonhosos. Não eram inteligentes, ao menos eu penso
assim. Chamavam-se de genocida, assassino, ladrão, bêbado, fascista, comunista... e assim a banda tocava. Eu
disse que era vergonhoso? Pois bem, parecia uma discussão entre duas crianças do primeiro ano do Ensino
Fundamental, disputando quem tem o maior lanche na hora do recreio.
Ah, esqueci de dizer onde estávamos! Eu estava sentado na sala dos professores — sim, na sala dos senhores do
conhecimento, detentores do equilíbrio emocional e ético... kkkkkkkkkk — parece brincadeira, mas é verdade!
Estava lá, tranquilo, sentado em uma poltrona gasta de couro marrom — aquelas que já viram melhores dias,
com a espuma interna claramente querendo escapar pelas costuras —, tomando um café bem forte e lendo O
Processo, de Kafka. Estava justamente no trecho em que o protagonista é preso sem sequer saber o motivo —
uma alusão clara a sistemas corruptos e autoritários — um fato corriqueiro na história e que acontece em todos
os governos, mesmo que os digníssimos colegas não reflitam sobre isso.
Enquanto sorvia o café, mordia um quadradinho de chocolate meio amargo para alcançar aquela modificação
de sabores singular, juntando as duas especiarias — um verdadeiro deleite para o paladar. Mas o sabor não
conseguia sobrepor o som ambiente: um festival de impropérios e ataques verbais, porque os colegas haviam
abandonado a razão e, visivelmente, transformaram os “amigos” de anos em oponentes ideológicos que odiavam
tanto. Ah, o espírito democrático em sua essência!
Mas eu, na minha postura neutra, fingia que não estava ali, orando aos céus para que os colegas pensassem:
“Certamente ele está viajando e nem sabe do que estamos falando!” — mas não. Sempre tem um afetado que
decide puxar você para o campo de batalha:
— Então, ei você, o que pensa sobre isso? Afinal, não podemos ter no governo alguém com esse perfil!
Vejam bem, qual o perfil? O de alguém que é profissional da política e que pouco se importa com vocês? (Lógico
que só pensei isso!) Então, respondi como se estivesse em outra dimensão durante a “conversação”:
— O quê? Do que vocês estão falando?
Nossa... a reação foi unânime, quase sincronizada:
— O mundo está mesmo perdido! Um professor de Literatura, de História, um escritor que não reflete sobre as
discussões importantes da sociedade? Por isso o mundo está assim!
Fiz minha cara de bobalhão corriqueira — aquela expressão vaga e levemente confusa, uma mistura de “não
sei” com “não quero saber” — como se não tivesse entendido nada, e voltei a ler Kafka. Enquanto lia, refletia
sobre uma sociedade insana, onde você não tem direitos e é acusado por pensar diferente da maioria, onde
advogados são meramente decorativos, pois também estão inseridos, enraizados no sistema desde a formação,
acreditando que só existe mesmo uma verdade.
Pois então... me senti em um ambiente kafkiano, parecendo um inseto gigante que, para meus “amigos” e
colegas, não pensava e, por isso, não tinha valor, merecendo o julgamento inquisitorial — e o pior, sem direito à
defesa.
Ahahahahaha! Mas é assim mesmo! Dos dois espectros ideológicos, quem não concorda com alguém, ao menos
no ambiente “super intelectualizado e crítico” da sala dos professores, é um inimigo.
* Professor e escritor, membro da Academia de Letras de Palhoça, atua nas áreas de Língua Portuguesa, Literatura e História. Autor dos livros "Fábulas para o século XXI", "La Befana – um conto de Natal", "Caco em busca da felicidade", "Não se Iluda", "Uma escolha, um destino", dentre outros
Publicado em 23/07/2025 - por Palhocense