
O retrato que não queremos ver
Pensei, sinceramente, que depois de uma semana cheia de atividades excelentes na escola e na vida pessoal — momentos de satisfação, emoção e até de sucesso — o mundo estivesse um pouco diferente. Mas as redes sociais e o convívio com pessoas não nos deixam esquecer a realidade da nossa humanidade.
Enquanto sorvia meu café amargo e mordiscava um chocolate igualmente amargo e delicioso, ouvia as conversas na sala dos professores. O ambiente exalava as tardes de escola: o relógio com tic-tac seco; o ar condicionado que reclamava; papéis empilhados no canto; o cheiro de borracha de apagador misturado ao aroma de café. Havia um ruído de fundo de risos contidos e cadeiras sendo arrastadas, e as vozes dos colegas recortavam-se no espaço como lâminas.
— Vocês viram só a “chacina” que aconteceu ontem no Rio de Janeiro? — começou alguém, e a discussão ardeu. Uns proclamavam que não havia chacina, afinal os mortos eram criminosos. Outros, em tom militante, diziam que fora uma tentativa de exterminar a população negra das favelas. Um terceiro defendia que eram apenas quatro vítimas, como se números tornassem menos humanas as vidas perdidas.
O botão do meu hiperfoco acendeu-se como sempre: sem aviso, sem alarde. Tentei parecer imerso em meu mundo subterrâneo — o café, o chocolate, o livro do momento, O Retrato de Dorian Gray — enquanto, secretamente, abria o navegador no computador. Li quatro, cinco, seis matérias. Coloquei um fone e ouvi depoimentos. Fiquei assustado. O que me perturbou não foi apenas o fato noticiado, mas a articulação do discurso que celebrou, silenciosa ou ruidosamente, aquela tragédia.
Já critiquei antes a perversidade humana quando aconteceu o assassinato de Charlie Kirk, e não consigo evitar as reflexões: mortes são mortes. Há diferenças de contexto, é claro. Um debatia publicamente; outros escolheram o crime como caminho. Ainda assim, celebrar mortes é uma tristeza que corrói a civilização aos poucos.
Observem: penso que a vida é feita de escolhas. Se alguém escolhe a violência como projeto de vida, colherá violência. Não estou defendendo criminosos; estou assombrado pela festa que alguns fazem quando seus antagonistas morrem. Como no retrato de Dorian Gray, que vai acumulando a feiúra da culpa enquanto o rosto que exibimos ao mundo permanece imaculado, essa alegria é um espelho quebrado que reflete outra face: a incapacidade de compaixão.
Continuei pesquisando e achei contradições que doíam de tão óbvias. O Governo Federal, dizem as notícias, não teria apoiado a operação com equipamentos que auxiliariam no combate ao crime organizado. O Presidente declarou que não haveria GLO em seu governo, mas autorizou o uso das Forças Armadas na COP30. O Ministro da Justiça, por sua vez, cedeu blindados para combater o tráfico de animais silvestres; resgataram 49 aves em maus-tratos. As manchetes pulavam de escândalo em escândalo, e eu sentia a dissonância como um ruído grave: prioridade declarada aqui, omissão ali; febre de moralidade seletiva.
Nesse instante, um grito trouxe-me de volta à sala. Retirei o fone. Alguém — com voz trêmula e um ódio que não cabia no corpo — explodiu:
— Pra mim chega, vocês não veem que isso é puro racismo? Um genocídio fascista!
Olhei ao redor. A maioria ali era branca. Mantive silêncio. Voltei ao meu fone, escolhi música calma, e pensei no retrato de Wilde: que retratos escondemos em nossas casas? Cada professor ali talvez guardasse uma tela deformada por segredos, por hipocrisias, por pequenas concessões morais que, acumuladas, tornam o rosto irreconhecível.
A sinalização de virtudes não passa de fachada quando desejamos o mal do outro. A vida de todos importa, não apenas a de grupos que nos convém ver como vítimas ou vilões. Enquanto persistirmos no egoísmo que exalta “o eu” e estigmatiza “o outro” como sujo, podre e corrupto, a razão seguirá sendo impotente diante das mesquinharias que silenciarão qualquer esforço coletivo.
Peço, com veemência e sem teatralidade, que reflitam: não vivemos isolados. Somos responsáveis pelas escolhas que fazemos e pelos gestos — grandes ou ínfimos — que legitimam ou condenam. Como mudar isso? Começa quando deixamos de ver nos outros apenas erros e começamos, de verdade, a corrigir os nossos.
E, por favor, antes de apontar dedos e carimbar alguém como opressor, perguntem-se: será que não somos nós, com nossas justificativas e absolvições, que ajudamos a manter a máquina de violência funcionando? Quando entendermos que a empatia não tem lado, talvez consigamos arrancar os retratos deformados que insistimos em esconder.
Publicado em 06/11/2025 - por Daniel Camargo Thomaz