
Dom Pedro II e a liberdade de expressão
O dia começou incrível — daqueles em que o professor acorda com a sensação de que o universo finalmente conspirou a favor. Dia de aula no Ensino Médio significa, para mim, aula de verdade: nada de passar quarenta e cinco minutos pedindo para crianças ficarem quietas, sentadas ou simplesmente lembrando-as de que a lousa não é opcional.
A manhã estava luminosa — luz branca atravessando as janelas da sala dos professores, cheiro de café requentado no fundo, minhas folhas de planejamento organizadas em pilhas tortas. E eu, com aquela animação típica de quem ainda acredita que a educação transforma, entrei na sala com o entusiasmo de quem vai apresentar um show e não uma aula.
Hoje seria especial: nenhuma pilha de textos para corrigir, nenhum hieróglifo adolescente para decifrar. A atividade era simples, quase um presente de fim de ano: exposições orais sobre um tema que todos, absolutamente todos, concordam ser importante — Liberdade de Expressão.
Preparei tudo com carinho quase acadêmico: vídeos, PDFs, exemplos históricos e, claro, minha tradicional exposição oral, estruturada com aquele brilho que só o hiperfoco em desenvolvimento pessoal é capaz de produzir.
E, na minha cabeça, tudo estava perfeito.
O que poderia dar errado?
(Sim, eu deveria saber que essa frase sempre chama o azar.)
As apresentações começaram. Eram boas — já foram melhores, admito — mas é final de ano letivo, e a exaustão pairava no ar como poeira iluminada pela janela. O ambiente tinha cheiro de caneta marcador velha, folhas gastas pelo manuseio e um burburinho abafado de quem tenta prestar atenção, mas só consegue pensar nas férias que se aproximam.
Ignoro as caras de poucos amigos, como sempre faço. Funciona — ou costumava funcionar.
Até que, empolgado demais (para variar), tomei a palavra. E tomei a palavra de um jeito tão meu que já conheço: voz firme, passos curtos pela sala, mãos gesticulando como se cada frase fosse um decreto imperial.
Respirei fundo, ajeitei meus óculos e disparei meu discurso inflamado:
— “Meus caros alunos, a Liberdade de Expressão é extremamente importante, mas nem todos os governantes sabem lidar com esta ferramenta democrática…”
E fui abrindo caminho entre séculos e ideias, falando do Segundo Reinado, da imprensa ativa — e às vezes impiedosa —, e daquele que considero um dos maiores estadistas brasileiros. Contei que Dom Pedro II acreditava que a crítica era parte da vida pública, que jamais mandou fechar jornal, que dizia que “a liberdade de imprensa é a melhor vigia do monarca.”
Quando finalizei, satisfeito com minha própria eloquência, ouvi a voz da minha aluna favorita atravessando o ar como um estilingue carregado:
— Olha o cara… fala em Liberdade de Expressão e defende a Monarquia!
A sala estourou em risadinhas, olhares rápidos, aquele burburinho típico de quem fareja polêmica.
Tentei justificar sem tolher a liberdade da estudante — afinal, coerência. Mas bastou mencionar Dom Pedro II para que o clima mudasse.
De repente, surgiram palavras como racismo, opressão, rancor, contradição — tudo ao mesmo tempo, misturado, como um caldeirão fervendo.
No meio da confusão, lembrei de John Stuart Mill, de sua clareza quase cirúrgica ao dizer que silenciar uma opinião é privar a humanidade da verdade ou da possibilidade de encontrá-la. Recordei a frase que tanto aprecio:
“Mesmo que toda a humanidade estivesse certa e apenas um indivíduo errado, a humanidade não teria mais direito de silenciar esse indivíduo do que ele teria de silenciar toda a humanidade.”
Mill teria aplaudido a coragem dos meus alunos; Dom Pedro II, com sua placidez ilustrada, ficaria encantado. Já eu… nem tanto.
Porque, adivinhem, depois de todo meu espetáculo — voz firme, passos calculados, mãos decretando pequenas constituições pedagógicas no ar — eles foram reclamar da minha fala na coordenação.
É isso mesmo: a juventude iluminista da minha sala decidiu exercer plenamente sua liberdade de expressão… contra mim.
Acho que comemorei a perfeição do dia cedo demais.
Publicado em 04/12/2025 - por Daniel Camargo Thomaz