Ser professor é, definitivamente, maravilhoso. Afinal, ouvimos, observamos e sentimos coisas muito estranhas no cotidiano de nossa profissão. É um universo à parte, onde o surreal flerta com o cômico e o absurdo se acomoda confortavelmente na poltrona ao lado. Enfim, mais uma semana na sala dos professores e, por incrível que pareça, tudo parecia tranquilo.
Aparentemente, claro.
Mas – como sempre ocorre, lembrando muito um episódio das famosas comédias de situação (as saudosas sitcoms) – adentra a
sala uma professora com um embrulho nas mãos. E não era qualquer embrulho: era uma verdadeira obra de arte em papel
celofane brilhoso, fita dourada, laço extravagante e aura de mistério. Ela caminhava com ares de protagonista de novela, olhos
iluminados, sorriso no canto da boca. Naturalmente, olhei bem para a cena, mesmo tentando fingir que não observava a
estimada colega.
Ela abre o embrulho com um certo suspense, como quem revela um segredo de estado. E então... retira um doce. Um doce
vistoso, reluzente, quase teatral. Bom, a partir daí, perdi o interesse. Quando falamos em doces, prefiro o chocolate — amargo,
de preferência — acompanhado de um café mais amargo ainda, para equilibrar a vida.
Com isso, voltei a fazer o que mais gosto — e preciso, para fugir da realidade e compreender a mim mesmo e tudo o que está ao
redor —: a leitura. Estava com um clássico em mãos, Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Um livro incrível. Um tapa literário
disfarçado de romance francês.
Enquanto lia sobre Emma — a personagem que passa a comprar roupas luxuosas, móveis sofisticados e artigos refinados
mesmo sem poder pagar por eles —, vi, com estes olhos que a terra há de comer, minha colega pegar o celular. E vejam bem: ela
havia aberto o doce, e o que fazemos quando temos um doce? Comemos! É isso que pessoas normais fazem. Mas não. Ela pegou
o celular e, com toda a habilidade de uma influenciadora digital, filmou a si mesma mordendo o doce. Mordendo, não:
encenando a mordida, pois a mordida real parecia ser um desafio à integridade dental.
Tentei apenas consentir com a cabeça, mas minha curiosidade — essa traidora de momentos pacíficos — é devastadora. Peguei
meu notebook (velho de guerra, com adesivos meio descolados e teclado já gasto) e pesquisei sobre o tal “morango do amor”.
Nossa... era mesmo uma febre na internet. E, para meu espanto, não era barato. Um único morango custava mais de R$ 10,00!
Um absurdo! Em época de colheita, uma caixa com quinze ou vinte morangos custa esse valor.
Minha curiosidade foi além. Entrei no Instagram. Os Stories eram todos iguais: um desfile de gente filmando o momento da
mordida no “morango do amor”. Um atrás do outro, como se existisse uma regra implícita: "se você não postar, não viveu". O
pior foi ver uma amiga que, quando a convido para ir a uma pizzaria, sempre diz que é um absurdo pagar caro para comer
quatro ou cinco fatias de pizza. Mas vejam só! Lá estava ela, com uma imagem sorridente, olhos brilhando e o tal morango a
meio caminho da boca, como se aquilo fosse a chave da felicidade eterna.
Refleti. E voltei à minha leitura.
Como sempre faço, fui anotar o que percebia da leitura e escrevi:
“Emma, influenciada por romances sentimentais que lia quando jovem, cria uma expectativa irreal sobre a vida, o amor e o
casamento. Ao perceber que sua vida com o marido, Charles Bovary, é monótona e sem glamour, ela tenta preencher esse vazio
através do consumo.”
Quando terminei de escrever o meu apontamento, olhei para minha colega, que agora resmungava baixinho sobre o fato de o
doce ser duro demais e difícil de dar a primeira mordida. Parecia uma cena de luta: ela, com os lábios semiabertos, tentando
romper a crosta açucarada, enquanto segurava o celular com o outro braço esticado, buscando o melhor ângulo. Era trágico e
cômico ao mesmo tempo.
E então, ao invés de ficar quieto — como a prudência teria aconselhado —, soltei:
— Esse é o preço de tentar demonstrar uma realidade tão diferente da verdade nas redes sociais. Penso que ler este livro poderia
te ajudar a enxergar em ti mesma o que está realmente faltando para não necessitar de bengalas sociais como a participação
coletiva da degustação do doce da moda.
O silêncio foi imediato. Até o ventilador barulhento parou por um segundo.
A colega, com os olhos arregalados e o doce trincado entre os dedos, respondeu:
— Por isso que ninguém gosta de ti. Tu sequer aproveitas a vida e ainda quer enfiar goela abaixo um livro chato!
Levantou-se, bufando, e saiu da sala batendo os calcanhares no chão de taco antigo, que rangeu em protesto.
Fiquei sozinho novamente, cercado por carteiras encostadas, quadros com avisos amarelados e o leve cheiro de café requentado
no ar. Pensei, então, sobre os discursos dos colegas professores sobre consumismo, modismo e outras coisas horríveis do
capitalismo... e sorri.
Talvez Flaubert também desse uma risadinha, lá do além.
Voltei à leitura. Afinal, Emma ainda tinha muito a ensinar.
E eu... ainda tinha muito a observar.
Daniel Camargo Thomaz
Publicado em 01/08/2025 - por Palhocense